segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

CAPÍTULO 1

         Tal como prometido deixo aqui o capítulo 1 do livro pra comentarem, espero que gostem. Até à próxima.

CAPÍTULO 1

         Roger Hawkins bebeu um gole do seu whisky com duas pedras de gelo, enquanto virava mais uma página de um dos muitos livros de angelologia que já vira naquela noite.
         A pequena sala em que Roger se encontrava tinha um ar bastante rústico e acolhedor. Tirando o pormenor da pequena sala não ter uma única janela, poucas pessoas seriam capazes de reconhecer aquele lugar como sendo um bunker.
         Tinham-se passado talvez mais de mil anos desde que Samuel R. Hawkins escrevera a sua famosa carta ao filho, encarregando-o de procurar os Escolhidos. Desde então, a carta passara de geração em geração, juntamente com a missão a que esta se referia. Com o passar do tempo, a carta escrita por volta do ano de 2050 acabou por chegar às mãos de Roger. De quarenta e sete anos, tratava-se de um homem inteligente e culto, e procurava os Escolhidos há já duas décadas.
         Passando rapidamente os seus olhos verde-azeitona por mais uma página, Roger passou para o livro seguinte. Recebera a carta de Samuel R. Hawkins quando fizera vinte anos, mas nunca tinha dado muita importância à missão. Era uma pessoa extremamente racional, e o facto da sua família procurar os Escolhidos há séculos sem encontrar nada, só o levara a uma conclusão: não existem Escolhidos nenhuns.
         Porém, tudo mudara radicalmente aos seus vinte e sete anos. Nessa altura, Roger era casado e a sua mulher estava grávida de três meses. Foi então que num fatídico dia de Abril, a sua mulher, com a criança no seu ventre, foi assassinada em frente dos seus olhos por um demónio. Desde esse dia, Roger jurou encontrar os Escolhidos e liquidar todos os demónios que caminhavam livremente no mundo.
         Agora, ali estava ele passados vinte anos, viúvo e cansado. Nos primeiros anos, a sua tumultuosa busca levara-o até Stonehenge, onde agora residia no seu bunker subterrâneo. Com o aparecimento dos demónios, nenhuma povoação ou cidade resistia, não existindo ninguém num raio de vários quilómetros.
         Apenas eu e os meus livros, pensara Roger quando se mudara para ali.
         A verdade é que a chama que outrora alimentara a sua vontade de encontrar os Escolhidos começava a desaparecer. Tal como todos os que o antecederam, Roger não conseguia encontrar nada sobre os Escolhidos. Pelo que sabia, os poucos textos existentes sobre os Escolhidos estavam guardados no Vaticano. Desde que a Nova Ordem deixara o Vaticano, todos os textos permaneceram lá, até ao dia em que os demónios surgiram. Juntamente com as restantes cidades do mundo, o Vaticano foi reduzido a cinzas, e com ele todas as escrituras conhecidas sobre os Escolhidos.
          Roger recordou-se de alguns pormenores que o seu pai lhe contara sobre a destruição do Vaticano. Segundo sabia, ao contrário do que acontecera no resto do mundo, em que as cidades foram evacuadas e as pessoas fugiram para salvar as suas vidas, o Vaticano praticamente entregou-se aos demónios. Num gesto que ficaria sempre na história, o Papa e todo o clero existente no mais pequeno país do mundo, reunira-se no interior da Basílica de São Pedro a rezar por um milagre. Tal como seria de esperar, este não aconteceu, fazendo com que o Vaticano fosse engolido pelas chamas e toda a comunidade religiosa ali presente queimada viva.
         É irónico pensar no facto de o Vaticano ter sido “queimado na fogueira” após ter condenado tantos ao mesmo destino durante séculos, pensou Roger.
         Ao olhar de novo para os seus livros e ao ver a figura de um anjo, Roger lembrou-se da heroína nacional francesa, Joana d’Arc. A também conhecida por Donzela de Orleães tinha combatido por volta de 1428, numa batalha que tinha como objectivo a libertação de Orleães dos inimigos ingleses. Após a vitória triunfal, a jovem não parou de anunciar que um anjo tinha combatido a seu lado. Mais tarde, Joana d’Arc veio a pagar um elevado preço pela revelação. Tendo sido acusada de heresia, a jovem heroína acabou por morrer queimada na fogueira.
         Apenas mais uma de uma longa lista, pensou Roger.
         Voltando a olhar para o livro que tinha à sua frente, Roger mergulhou de novo no seu trabalho.
         Mas onde é que eu vou parar? Perguntou-se Roger passando a mãos pelos seus lisos e curtos cabelos cinzentos.
          A busca pelos Escolhidos estava-se a tornar tão desditosa, que Roger começava a procurar sinais da sua existência nos lugares menos prováveis, como era o caso. À sua frente, Roger não tinha nada mais, nada menos, do que a primeira hierarquia dos anjos proposta por Dionísio Areopagita, criada cerca de quinhentos anos após a morte de Cristo.
         Apesar de saber que os anjos existem apenas nas religiões monoteístas, o facto de estes nunca serem relacionados a manifestações de Deus, e serem frequentemente descritos por profetas e envagelistas, levaram Roger a pensar que talvez houvesse alguma relação entre estes e os Escolhidos.
         Afinal de contas, os antigos acreditavam que tudo existia aos pares: o dia e a noite, o bem e o mal, a Luz e as Trevas, os anjos e os demónios.
         A pista que levara Roger e a sua pesquisa até aos anjos, residia no facto de os Escolhidos terem por missão combater e destruir os demónios, os representantes das Trevas. Como tal, Roger acreditava que os Escolhidos eram representantes da Luz, sendo por isso o oposto dos demónios, ou seja, anjos.
         Lançou mais um olhar para a classificação de Dionísio e começou a ler os nomes dos vários tipos de anjos. Querubins e serafins, arcanjos e anjos comuns, e por fim, os famosos anjos-da-guarda.
         Ao ler o nome das várias classes de anjos, o desespero e a frustração voltou a apoderar-se de Roger.
         Mais um beco sem saída, pensou.
         Cansado com tudo aquilo, Roger encostou-se no cadeirão de madeira em que estava sentado e deixou-se cair num sono profundo. Voltaria ao trabalho quando tivesse descansado um pouco.

***

          Acordando sobressaltado, Roger procurou à sua volta o que tinha causado o estrondo que o acordara. Foi então, que ali mesmo à sua frente, Roger viu alguém ou alguma coisa com uma estranha aparência.
         Apavorado, saltou no cadeirão. Receava tratar-se de um demónio, isto apesar de nunca ter visto nenhum assim…
         O estranho ser que se encontrava à sua frente possuía quatro faces: uma humana, uma de leão, uma terceira de águia, e por fim uma de querubim. A criatura possuía ainda quatro asas, encontrando-se sob estas algo que se assemelhava a mãos humanas.
         Temendo que se a criatura fosse um demónio esta ceifasse a sua vida, Roger tentou preparar-se para a chegada da morte.
          De súbito, a face humana da criatura fixou o olhar em Roger e murmurou qualquer coisa numa língua desconhecida.
         – A bola de fogo seguirás, a água profunda atravessarás e o que procuras encontrarás – disse a voz mais harmoniosa que Roger alguma vez ouvira.
         Assim que a criatura acabou de falar, a pequena sala do bunker encheu-se de uma luz branca e brilhante, cegando momentaneamente Roger.

***

         Acordando de sobressalto no cadeirão. A pequena sala do bunker encontrava-se vazia, não havia qualquer sinal da estranha criatura.
         Terei eu sonhado? Perguntou-se Roger.
         Olhando rapidamente para o seu relógio de pulso, Roger reparou que estivera a dormir cinco minutos desde que largara os seus livros.
         É impossível, disse Roger para si mesmo. Se tal encontro aqui teve lugar deviam ter passado mais de cinco minutos, pensou.
         A bola de fogo seguirás, a água profunda atravessarás e o que procuras encontrarás, ecoou a voz da criatura na sua mente.
         De súbito, tudo pareceu ficar mais claro. Roger tinha a certeza que já tinha visto uma representação daquela criatura em algum lado.
         Folheando rapidamente os vários livros que tinha em cima da mesa, Roger procurou uma imagem que lhe parecesse familiar. Passados poucos minutos, encontrou o que procurava.
Mesmo à sua frente, estava a imagem de um fresco do século XIII que se encontrava na Catedral de Anagni, na Itália. Tratava-se de um querubim, um tipo de anjo que era referenciado na história da criação como sendo o guardião do Paraíso.
         Ainda meio pasmado com a sua descoberta, Roger leu um pequeno extracto do livro de Ezequiel, do Antigo Testamento.
         A descrição feita por Ezequiel era exacta. Não havia dúvidas. Roger Hawkins acabar de ter um encontro com um anjo.
         Sentindo que começava a ficar abafado no interior do bunker, Roger levantou-se, abriu as várias portas de metal e as grades de segurança, e saiu para o centro das outrora famosas ruínas de Stonehenge.
         A ideia de construir um bunker por baixo das ruínas surgiu a Roger quando soube que a Nova Ordem tinha sido criada naquelas mesmas ruínas. Apesar de não ter sido a Nova Ordem a construir aquele lugar, esta usara Stonehenge como local para as suas reuniões até ter sido aceite no Vaticano.
         A rude beleza e a força mágica que a construção emanava sempre fascinaram Roger. Aquele lugar fazia-o sentir-se calmo e ajudava-o a pensar.
         Roger deixou-se ficar sentado sobre uma das pedras das ruínas, enquanto pensava no que o anjo lhe dissera. Apesar de ser bastante racional no que tocava aqueles assuntos de aparições, Roger sentia que seguir aquela pista podia ser a solução para encontrar os Escolhidos, mas não conseguia explicar porquê.
         A bola de fogo seguirás, pensou. Que raio queria ele dizer com aquilo?
         Roger já tinha chegado à conclusão que a água profunda devia ser um mar ou oceano, mas o significado da primeira parte ainda o baralhava.
         De súbito, um enorme meteoro em chamas surgiu no céu nocturno passando mesmo por cima de Stonehenge.
         – A bola de fogo… – murmurou Roger para si mesmo.
          Agora tudo fazia sentido, apenas tinha de seguir o meteoro e em breve encontraria o que procurava. Como se não chegasse, o meteoro dirigia-se em direcção ao mar.
Após trancar rapidamente o bunker, Roger Hawkins pegou na sua moto quatro, uma Yamaha YFZ450 azul, que tinha tirado do bunker. Uma verdadeira relíquia anterior à época dos demónios.
         Efectuou várias tentativas para ligar o velho motor da mota, mas esta estava constantemente a ir-se abaixo devido ao frio que se fazia sentir. Finalmente, após várias tentativas, a mota pegou e Roger apressou-se a seguir o rasto do meteoro através da velha estrada que passava mesmo ao lado das ruínas de Stonehenge.
         Enquanto percorria a estrada montado na sua mota, Roger não conseguia conter a excitação que sentia. Durante anos procurara os Escolhidos e agora, sem mais nem menos, era-lhe dada uma pista que ele podia seguir. Se tudo corresse bem, ele estaria com os Escolhidos dentro de poucos dias.
         Inesperadamente, uma dúvida percorreu então a mente de Roger: afinal quem ou o que são os Escolhidos?
         Roger não fazia ideia de quem ou o que eram os Escolhidos. Tanto quanto ele sabia, podiam ser pessoas ou anjos como o que vira. Isto se tiverem forma física, pensou.
         Apesar de não fazer ideia do que ia encontrar, estava certo que saberia reconhecer um Escolhido quando o visse.

***

         Roger Hawkins conduziu a sua moto durante toda a noite até chegar a uma pequena localidade à beira mar chamada Smallport.
         Smallport vivia às custas do mar. Tendo sido criada apenas há cem anos, todas as casas eram bunkers como o de Roger. Apesar de não haver muito demónios na zona, os habitantes construíram as suas casas sob o solo de forma a obterem protecção.
         Roger tinha que reconhecer que a pequena localidade de Smallport tinha conseguido o impossível: uma vida calma e normal sem despertar atenções indesejadas.
Tirando a pequena doca construída em madeira, ninguém conseguia avistar qualquer vestígio de civilização, escapando por isso a comunidade à maldade dos demónios.
         Enquanto o Sol nascia no horizonte, Roger parou a sua Yamaha YFZ450 azul perto de uns rochedos no meio da localidade. Tendo visitado Smallport já por várias vezes, Roger sabia perfeitamente que os visitantes não eram bem recebidos. A população temia que os estrangeiros trouxessem os demónios atrás de si.
         Caminhado na vasta planície, Roger foi ao encontro de uma das muitas portas de bunkers que ali havia. Na porta estava desenhado um barco e tinha escrito maritime transport.
         Transporte marítimo, é mesmo disto que eu preciso, pensou Roger.
         Tratava-se de uma pequena empresa da localidade que transportava pessoas através da costa em troca de determinadas quantidades de dinheiros pelos seus serviços.
         Roger meteu a mão no bolso e viu quantos Discos tinha consigo. O Disco tornara-se a moeda única em todo o mundo à semelhança do que o Euro tinha sido para a Europa antes da chegada dos demónios.
         Respirou fundo e entrou no bunker. Aguardava-o uma longa travessia do Canal da Mancha até poder continuar a sua busca pelos Escolhidos.